Auto dos Escrivães do Pelourinho

[ Gil Vicente, 1527 ] Março Abril de 1527

(publicado como anónimo em 1625)

Acção dramática: (lugar: feira do Paço; o tempo, sucede entre Outubro de 1526 e Janeiro/Fevereiro de 1527)

Auto dos Escrivães do Pelourinho Velho em que entram as figuras seguintes: dois Patifes, dois Escrivães, e um Negro, e um Vilão, uma Velha, um Atafoneiro, um Ratinho e um Parvo. Foi visto pelo Padre Frei Luís dos Anjos. Em Lisboa, por António Álvares, ano 1625.

Entra Duarte, patife, e diz:

1

Duarte

O diabo me tomou

ir eu viver com ninguém

não sei quem me enganou

que vivia muito bem...

O demo me cativou!

5

Vivia à minha vontade

tinha vida muito boa

que, só por minha maldade,

era dos velhacos coroa

da Ribeira desta cidade.

10

2

Andar ali homem com feira

esse é todo o folgar

e dizer: quem quer levar?

E se vê bolsa ou algibeira

ver se a pode cortar.

15

Vive homem mui contente

à perinha e à maçã

que esta vida é glória vã,

e também comeis pão quente

com manteiga, pela menhã.

20

3

Viveis assi descansado

sem ter nenhuma opressão

ali, no mal cozinhado,

há aí peixe cozido e assado

que comeis com vinho e pão.

25

Muitas cousas de folgar

acha homem para bargantes,

há i uns dados de jogar,

e também um apanhar

de finos melões de Abrantes.

30

4

E outra cousa nos quadra

e nos é mui prazenteira,

esta é a nobre Feira

que há sobrenome Ladra...,

com que muitos tem cenreira.

35

Duas vezes me tomaram

por mandado do meirinho.

A primeira me açoutaram,

e a outra, me ficaram

as orelhas no pelourinho.

40

5

Ora quero-me calar

com toda minha paixão...

E a mesa consertar

a meu amo, o escrivão,

por que não venha bradar.

45

Estando consertando entra Gonçalo e diz:

6

Gonçalo

Ah, Duarte, companheiro!

Que alvíssaras, me hás de dar

finas, de muito dinheiro...,

porque te trago, parceiro,

novas para bem folgar.

50

Duarte

Que demo pode isso ser,

que tu vens mui prazenteiro!?

Isso deve ser comer...,

ou cousa de grão dinheiro

segundo meu parecer.

55

7

Gonçalo

Cousa é, de grande avio,

que a nós muito nos quadra,

de que eu me maravilho

e que é, a Feira da Ladra

que se muda ao Rossio.

60

Acordámos em conselho

de se esta feira mudar,

sequer para nos deixar

aqueste alcaide velho

que a todos faz açoutar.

65

8

Duarte

Parece-me a mi mal

tal conselho se acordar

porque nos há de caçar

aí Francisco do Casal

e fará de nós mau pesar.

70

Gonçalo

Esse, está mui bom dizer

bem, Francisco do Casal

que nos pode aí fazer...,

ele pode-nos prender

nas escadas do Hospital?

75

9

Duarte

Ora, muito embora seja,

singular é teu dizer,

não nos pode aí prender,

porque isso é igreja...

Viveremos a prazer!

80

Em tudo és avisado,

e eu certo, assi to chamo...

Mas deixando isto apartado,

donde fica o malvado

do velhaco de teu amo?

85

10

Gonçalo

Mandou-me hoje trazer

a mesa a este lugar.

Eu bofe, fui-lha vender

e meti-me a jogar...,

e o dinheiro fui perder.

90

Duarte

Ora estás bem aviado

não hás vergonha de fugir?

Que tinhas amo honrado...

Foste mal aconselhado

de tal amo te sair.

95

11

Gonçalo

Minha ama é desesperada,

não tem nenhuma rezão,

e, mais mal-aventurada,

pespegava-me punhada

que dava comigo no chão.

100

Duarte

A minha é arrezoada,

uma cara de estorninho,

seu beber é biscainho...

A cada comer, uma canada,

há de beber de bom vinho.

105

12

Gonçalo

Olhai, com que me acude,

tudo isso não é nada,

falas-me numa canada?

Pois a minha, um almude

bebe de cada assentada.

110

Duarte

O mundo vai-se perdendo,

porque já não há mulher

moça, velha, e qualquer,

já todas o vão bebendo...

E o chupam no pichel.

115

13

Então, se lho vem beber,

dizem que é por amor da madre...

Sabem já tanta maldade...,

que não se podem escrever

cousas desta qualidade.

120

Doutra cousa me espanto...,

e é para espantar!

Velhas mortas por casar...,

que não podem com o manto

e querem-se desposar.

125

14

Gonçalo

Isso é por que eu cramo,

já todas querem casar...

Mas deixando esse falar,

enmentes não vem teu amo?

Queres tu aqui jogar?

130

Duarte

E que jogo jogaremos?

Primeirinha a descartar?

Gonçalo

Joro i, de não na jogar,

Mas aos dados rifaremos

que é jogo singular.

135

15

Duarte

E eu que os fui perder!

Gonçalo

Aqui trago eu, alguns três,

muito bons de receber.

Vê tu, se o queres fazer,

e mais, logo há de ser!

140

Duarte

Sou contente, não me pesa...,

bem podes logo deitar,

se tua mercê mandar...

Aqui, sobre esta mesa.

Gonçalo

Quanto havemos de jogar?

145

16

Duarte

Cada rifa, um vintém,

ponde aí o tostão,

que eu conheço-vos mui bem.

Gonçalo

Ponde vós outro, cabrão!

Duarte

Vedes o meu, como vem?

150

Gonçalo

Jogo pois, que assi quereis,

eis ali, tenho catorze...,

e sete, são vinte e três...,

eis ali, tenho mais doze...,

e fazem trinta e seis.

155

17

Duarte

Eis ali, tenho eu dez...,

dez e quatro, são catorze...,

e onze, são trinta e três!

Gonçalo

Olhai, que esto já perder,

pouco te aproveitam os onze.

160

Duarte

Mas tornemos a jogar

que esto foi balcarriada,

se não, não te hei de pagar.

Gonçalo

Se quisesses ora zombar!?

Paga-me, não cures de nada!

165

18

Duarte

Que dizes, que te hei de pagar?

Dar-te-ei infinita punhada!...

Gonçalo

Si vós quereis peleijar

por me não pagardes nada,

esse está mui bom falar.

170

Sus, paga-me o dinheiro,

se nam hei-te de matar!...

Ora hás-me de pagar...

Duarte

Também trazemos faqueiro...,

com faca para arrancar.

175

19

Gonçalo

Que é isso? Já vós suais?

Que é agora o que dizeis?

Já vós vos acovardais?

Duarte

Ainda vós, vilão, falais?

Já vos acolheis?

180

Vão-se ambos e entra o Escrivão Primeiro e diz o Escrivão:

20

Escrivão 1º

Digo que isto está bem.

O meu moço não é aqui,

e foi-se por i além...

Que me mate por roim

se não prova o rebém.

185

Confiai lá em rapazes,

e vereis onde ireis ter...

Para nada são capazes!

E nunca tendes prazer

com eles, nem menos pazes...

190

Entra o Escrivão Segundo e diz:

21

Escrivão 2º

Ora bem, Deos vos ajude!

Há cá muito que fazer?

Escrivão 1º

Deos vos dê muita saúde!

Inda agora aqui vim ter

e sempre ele me acude.

195

Escrivão 2º

De que estais apaixonado?

Escrivão 1º

Estou! Eu que fui mandar

hoje mesa aqui pousar

por aquele meu deslavado,

e foi-me aqui só deixar...

200

22

Escrivão 2º

Eu também estou espantado

que dês hoje, este dia,

é cá o meu malvado.

É certo que se iria...,

e levou-me o meu furtado.

205

Escrivão 1º

A que o mandastes cá?

Que esse vosso, é má peça!

Escrivão 2º

Nunca vi cousa tão má!

Mandei-o trazer a mesa

e ele inda não é cá.

210

23

É certo que foi vender

a mesa para jogar...

Escrivão 1º

Dive-lo de ir catar

antes de se acolher,

ou o dinheiro jogar.

215

Escrivão 2º

Mas dá-me ora na vontade

que é essa a minha mesa...

E também a minha tripeça!

Escrivão 1º

Pardês, que dizeis verdade!

Do que, ora bem me pesa.

220

24

Escrivão 2º

Assi é, por vida minha,

que, eis ali, o sinal tem.

Escrivão 1º

Ora, eu estava bem...

A minha mesa é vendida,

pois ela aqui não vem.

225

Nunca mais me hei de fiar

em moço que eu tiver...

Sempre eu ouvi dizer,

que é melhor, só estar,

que mal acompanhado viver.

230

25

Eu o vou logo buscar

per i, por esta Ribeira,

e hei-o bem de fustigar...

Escrivão 2º

Havei-lo de achar na Feira

da Ladra..., ou a jogar!

235

Escrivão 1º

Lá o quero ir buscar!

Se ele aqui vier ter,

fazei vós polo tomar.

Escrivão 2º

Se ele aqui vier

eu o farei aqui estar!

240

Vai-se o Escrivão Primeiro e entra o Negro cantando.

Cantiga:

Negro

Siora por que matai

Fronando deso beição

pois tener mi coração?

26

Fala:

Ah cotado malo-banturado,

cotado mi coração

245

como vioer tam penado...

Sempre doente, nunca são,

sempre mai martorizado.

Ai cotado, que barei,

nunca ter em mi prazer,

250

por isso nunca bom ter

mujer que anda com rei...

Porque nunca poder ber.

27

E por força, dezer,

burnudo masso que pego,

255

por que nunca falecer

outro perro de cão negro,

que para ela querer.

Contudo, mi sacreber,

ua carta a embora

260

em que manda rei dizer

alembrai mina siora

desse bodo que querer.

28

Ou sioro, belo mão!

Escrivão 2º

Venhas muito embora.

265

Negro

Nunca mi fugido, não.

Escrivão 2º

Pois, que queres agora?

Negro

Não sentai bós, o scrivão?

Escrivão 2º

Sião para quê,

ou que queres tu fazer?

270

Negro

Querer sacreber!

Secutar boso mercê

e deixar a mi fazer.

29

Escrivão 2º

Ora bem, podes falar...

Assenta-te nesse banco!

275

Quanto me hás de dar?

Negro

Mi, darei um bintém branco,

se boso querer, começar.

Escrivão 2º

Sam contente. Nessa hora

o dinheiro me hás de dar,

280

e hei-ta logo de acabar...

Negro

Si, eis aqui, tomar.

E pôr logo : siora.

Carta do Negro:

30

Negro

Siora,

se bós querer, matai, matai

285

porquê já? Porquê? Falai

por que nunca mio agora?

Quer mi lebar

à coba, a enterrar?

Nunca querê sacreber...

290

Não querê mandar recado!

Parece que há de morrer

e assi, desoporado,

para nunca más a ber.

31

Não querê malo falar,

295

senão que mandar dezer

que outro negro não tomar

para coso defender

senão mi há de raivar...

Pôr: de boso sobridor,

300

e amigo, Fernão Capado...

Muito grão boso morado...

Ora ser, ora sior.

Lê a carta o Escrivão ao Negro e acabada diz o Negro:

32

Negro

Jesu, Santo Perito,

cumo sentar bem notada...

305

Ora, fazê bem cerrado...

Ora faz o sobrequito,

pera bai bem sacritada.

Escrivão 2º

Que sobrescrito há de levar?

Negro

À siora, siora... Mi siora

310

Caterina Rabular...

Em casa de Dom Gasopar...

Na cidade de Ébora.

33

Escrivão 2º

Ei-la, aí tens acabada,

vê tu que queres agora...

315

Negro

Sentar bem sacritada?

Escrivão 2º

Toda está bem concertada!

Vai-te muito na boa hora.

Vai-se o Negro e entra um Moço de escudeiro.

34

Moço

Não pode maior mal ser,

que ser moço de escudeiro!...

320

Que nunca tendes dinheiro,

nem menos bem de comer.

Enfim, que é vida de marteiro.

Mui mal aconselhado

fui, pôr-me com escudeiro...

325

E mais ainda, com um pelado!

Que dous vinténs em dinheiro

não tem o triste cuitado.

35

E entam, (...ol)

vê-lo ir para o serão...

330

Que vai feito um caracol,

e vai-se à Porta do Sol

furtar capas, para pão.

Entam, ver a simulação

com que vai a casa ter.

335

Faz: moço tens de comer!?...

Porque eu venho do serão,

bofé, com grande prazer.

36

Perque lá, não me escapa

um bailar de tordião...

340

Bailei eu de tal feição

que me deram esta capa,

que trouxesse para pão.

E ele, trá-la furtada

ao triste pecador,

345

que ganhou com seu suor...

Não falo nisto mais nada

lá se avenha com o senhor.

37

Que ele há o de pagar,

em Inverno ou Verão!...

350

Ora, enfim, quero falar

ao senhor escrivão...

Deos o queira ajudar!

Escrivão 2º

E a vós, senhor, também

vos queira sempre guardar!

355

Moço

Queria com ele falar...

Escrivão 2º

Ora, diga ao que vem,

servi-lo-ei, se mandar.

38

Moço

Quero que seja informado

do caso a que venho aqui:

360

Eu estou com um pelado

de um escudeiro, assi,

muito grande namorado.

E tem-me ele prometido,

se lhe eu arrecadar

365

isto, que quero contar,

um muito fino vestido,

diz, que mo há logo de dar.

39

E, é que anda de amores

com uma filha da sardinheira...,

370

que agora é tripeira!

Ela, não lhe dá favores,

do que ele tem canseira.

E mandou-me um recado

agora, a sua casa,

375

e eu não sei o que faça

sequer! Por ir aviado,

faça-me uma carta falsa.

40

Como que vem de sua mão...

Ganharei eu o vestido!

380

E mostre ter-lhe afeição,

dizendo, que o coração

só por ele tem perdido.

Escrivão 2º

Eu farei isso, mui bem,

se me for mui bem pagado!

385

Moço

Aqui trago eu diputado

para isso, um vintém.

Escrivão 2º

Como dizia o recado?

41

Moço

Dizia, senhor, assi:

Eu sou mui pouco alembrado

390

senhora do meu cuidado,

mas, alembrai-vos de mim,

que por vós vivo penado.

Escreve o Escrivão a carta entre si desta maneira:

carta:

Senhor,

Cá me mandou um recado,

395

em que dá a entender

que eu lhe dou cuidado,

e, que de mi não é lembrado,

e que o deixo morrer...

42

Por certo que tudo isso

400

se encerra em mim, senhor,

que sam presa de seu amor...

Por ver-lo, em seu serviço,

não lhe escrevo mais senhor.

Escrivão 2º

A moça, como se diz?

405

Moço

À moça chamam Maria,

segundo a mãe dizia...

Escrivão

Sua servidora, Maria...

Ora escutai o que fiz!

Vereis cousa à maravilha!

410

Lê o Escrivão a carta acima escrita e acaba diz o Moço:

43

Moço

Está, meu senhor, tam bem,

que não pode mais estar!...

Há-me a logo de cerrar...

Tome aí este vintém,

escrito não há de levar.

415

Escrivão 2º

Ei-la, aqui tendes cerrada.

Isto para homens vãos

não é senão marmelada,

porque vai mui bem notada...

Moço

Senhor, beijo-lhe as mãos!

420

Vai-se e entra um Vilão e diz:

44

Vilão

Este é um cajo forte,

para mim, de grão cuidar...

Não sei em que há de parar,

ou ela a tomou, a morte,

ou a quer, nego, tomar!

425

Como é não me mandar,

a boa de minha molher,

uma carta de escrever...

Pois que, nego, quer passar

de três meses que vim cá ter.

430

45

Não me parece a mim

isto bem, a bem falar...

Ela carta não mandar...,

amorio novo anda por i,

não posso menos cuidar.

435

Mas se ela assi o faz

não o fará por maldade,

fá-lo-á por amor da madre

de que é doente assaz...

[…]

46

Enfim, hei-lhe de escrever,

440

porque certo é rezão...

Verei que manda dizer!...

Deos vos dê muito prazer!

Sois vós, nego, o escrivão?

Escrivão 2º

Que quereis, homem de bem?

445

Vilão

Queria senhor, fazer,

digo, nego, escrever

uma carta ou item,

para inha molher...

47

Escrivão 2º

Ora, assentai-vos aí...

450

Quem na há de notar?

Vilão

Eu lhe hei bem de pagar...

Escute-me a mi

o que lhe quero contar.

Eu sam, senhor, casado,

455

na vila de Alfundão...

Vai, veo um meu cunhado,

faze-me vir com apelação

lá sobre um meu serrado.

48

Ando cá desde Agosto,

460

sem a boa de inha molher

sem nunca me escrever...

Ela tem mui bom rosto,

hei medo, que se há de esquecer.

Escrivão 2º

Quem há de notar?

465

Vilão

Vós, hei-la de escrever,

e eu, a hei de notar.

Um vintém vos hei de dar...

Começai logo a fazer...

49

Ponde logo: Senhora molher...

470

Carta que escreve o Vilão:

Carta

Senhora molher.

Sempre eu vim no batel

até que aqui vim ter...

Não me quisestes escrever,

quiçais, não tereis papel,

475

ou, o não sabereis fazer.

Eu fico nesta cidade

de vós muito agravado,

por me dizer João de Arado

que andais cheia de vaidade,

480

e que, é tudo emburrilhado.

50

Se assi é, ou não,

vós mesma o sabereis!...

Vós, olhai o que fazeis,

não durmais o sono em vão

485

porque certo mal fazeis.

E mais, vos faço saber,

que cá não faço mal alguém...

Não quero mais escrever

senão, que Deos vos dê bem,

490

e vos livre de bem querer.

De vosso marido, João Lourenço.

51

Vilão

Escreva o sobrescrito

para, Maria amada,

molher de bem, e casada,

495

moradora em Santo Spirito

na vila já nomeada.

Tendes tudo acabado?

Escrivão 2º

Já estais bem aviado...

Vilão

Pois, tomai este vintém,

500

e Deos vos dê sempre bem

porque sois homem honrado.

Vai-se o Vilão e entra uma Velha e diz:

52

Velha

Eu tenho bom parecer

e tenho boas feições...

Me desejam todos ver...

505

E, não posso tam velha ser

como foram as paixões.

Estas paixões me enterrarão,

e secarão até aos tutanos...

Paixões me envelhecerão,

510

que agora não me chegarão

mocezinhas de quinze anos.

53

Uma carta quero mandar

a um homem de prazer,

hei-lha mui bem de notar

515

que se há de espantar!...

Verei que me manda dizer.

Eu, triste, não vejo nada...

Onde está o escrivão?

Escrivão 2º

Que mandais, dona honrada?

520

Velha

Deos vos dê consolação!

Escrivão 2º

E a vós, faça bem casada!

54

Velha

Amem!...

Escrivão

Que mandais?

Assentai-vos para aí.

Velha

Quero fazer assi:

525

quero que me escrevais

uma carta logo aqui...

Tomai logo esse vintém.

Haveis-ma de escrever

a um padre, que me quer bem,

530

ponde tudo por item,

como vo-lo eu disser.

Carta que manda escrever a Velha:

55

Carta

A vós, Gonçalo da Cortiçada...

Eu vos mando encomendar,

que vos queirais alembrar

535

como por vós sam prenhada,

e quero-me convosco casar.

Por isso, vede o que fazeis,

tirai-vos desse marteiro...

Que melhor vos casareis

540

que andardes por varredeiro

de quem, mais que eles valeis.

56

Disto, tende vós cuidado,

não vos cure de esquecer...,

sereis mal aconselhado...

545

Não quero mais escrever,

senão, que sejais bem casado.

De vossa esperdiçada, Ana Afonso.

Isto abasta, por agora,

não lhe quero mais pousar.

550

Sobrescrito não há de levar...

Ora sus, naquessa hora

ma tornai a declarar.

Lê o Escrivão a carta e diz a Velha:

57

Está senhor muito bem

555

não há i mais que falar...

Deos vos queira bem guardar!

Escrivão 2º

E a vós, dê sempre bem,

e vos queira bem casar.

Vai-se a Velha e entra um Atafoneiro e diz:

58

Atafoneiro

Esta ida del rei para Évora

me deu mui grande canseira,

560

porque, se ele não fora,

estivera aqui agora

minha senhora padeira.

Que agora vivo penado,

penado com afeição...

565

[]

pois o amor tam chegado

se foi, por me dar paixão.

59

Eu hei-lhe de escrever

uma carta excelente...,

570

que se espante a gente

que a ler, ou ouvir ler,

como homem mui prudente.

Este, deve ele de ser,

o decho do escrivão...

575

Ora Deos vos dê prazer!...

Se quiserdes..., senão, não...

Assi se há de entender.

60

Escrivão 2º

Que diz lá o atafoneiro?

Pareceis-me namorado!

580

Atafoneiro

Bofé, bem atribulado,

que passo tanto marteiro

quanto sabe meu cuidado.

Escrivão 2º

Pois, que é o que quereis,

que vindes arrecadar?

585

Atafoneiro

Vós não me escrevereis

uma carta para mandar?

Escrivão 2º

Escrever-vos-ei eu, três.

61

Atafoneiro

Pois, tomai este vintém,

fazei como vos disser,

590

que, se for a meu prazer,

um melom de Santarém

vos darei para comer.

E ponde logo: Senhora.

Carta do Atafoneiro:

Carta

Depois de me encomendar

595

em vosso chapado amor

para vos contar minha dor...,

não vo-la posso contar

porque me falta favor.

62

Digo, que mouro vivendo

600

por vos ver, minha senhora...

Não sejais vós causadora

de me eu estar cá morrendo.

Vinde vós já dessa Évora.

Assi, senhora, que me não dê

605

com esses tiros tão mortais,

porque o que passo não vê...

E por agora, nô mais,

encomendo-me em vossa mercê.

De seu amado, Afonso Gil

610

Lea-me ora...

Lê o Escrivão a carta acima escrita.

63

Atafoneiro

Muito boa está assaz...

Ora, çarre-ma agora.

O sobrescrito diga: à senhora...

Senhora Lianor Vaz,

615

minha grande matadora.

Escrivão 2º

Ei-la, tendes acabada,

bem vos podeis ir embora...

Ei-la aí, mui bem cerrada.

Atafoneiro

Ficai com Nossa Senhora,

620

que o tenha em sua guarda.

Vai-se o Atafoneiro e entra o Ratinho e diz:

64

Ratinho

Ai!... Se com este suspirar

se me fosse a paixão,

para me desabraçar

este triste coração

625

que de dor, me quer saltar.

Ai!... Hei por força de sentir

a dor daquesta ferida...,

pois me veo a ferir

a esperança perdida,

630

para me nunca mais vir.

65

Ah, cartinha quem te fez?

Por que não queres falar?

Ai!... Ajuda-me a suspirar,

porque é certo, que tu vens

635

da causa do meu penar.

Como vai a Catalina?

Não me queres responder?

Por quem te mandou escrever?

Nam quer a minha mofina

640

que o tu saibas dizer.

66

Em que cabo pôs a mão

aquele rosto pintado,

mais luzente que carvão,

para que o meu coração

645

nela seja pranteado?

Quero-te ir dar a ler...

Tu serás o meu perigo,

nisso, não há que fazer...

Deos vos ponha mais prazer

650

do que eu tenho comigo!

67

Escrivão 2º

Tu sejas mui bem chegado!

De que é tua paixão?

Ratinho

É um mal de coração

que o tenho asseteado,

655

sem cura, nem guarnição.

Escrivão 2º

Tenho grande dor e pesar

certo, deste vosso mal...

Por que dais a demonstrar,

não se pode já curar.

660

Foste já ao esprital?

68

Ratinho

De ninguém é conhecido

meu mal, nem minhas dores...

Curaram-me os curadores

do esprital dos perdidos,

665

que mas fazem inda maiores!

Escrivão 2º

Muito bons mestres há i!...

Não sei como não sois curado,

assentai-vos para aqui.

Ratinho

Sempre este mal em mim

670

está mui encurralado.

69

Escrivão 2º

Não vos posso entender,

não falais por via direita.

Fostes ao esprital ter?

Como pode isso ser?

675

Não vos deram alguma receita?

Ratinho

Receita, senhor, si,

hoje ma meteram na mão!

Ai!... Para o meu coração

sem chegar mais ao fim

680

e eu ter maior paixão.

70

Escrivão 2º

Isso é carta de amores,

e vós sois-me namorado?

Ratinho

Essas são as minhas dores!

Escrivão 2º

Aqui tendes mil favores...

685

[…]

Lê o Escrivão a carta que traz o Ratinho, e é a seguinte:

71

Gonçalo amado

e de mim mui querido:

Sois meu namorado,

porque já é devido

vos é ordenado!

690

Cá me querem casar,

muito em que me pés.

Vinde-vos apresentar,

olhai que fazeis!

Deos vos queira guardar...

695

Vossa amiga, Catalina.

72

Ratinho

Ai! E não mandas mais dizer?

Diz que a querem casar,

hei-me de pôr a chorar...

Quer-me ele escrever

700

a resposta, se mandar?

Escrivão 2º

Eu a farei muito bem,

mas haveis-me de pagar.

[]

Ratinho

Tomai lá esse vintém,

começai de assentar.

705

Carta que nota o Ratinho para mandar à sua dama:

73

Carta

Vós me tendes já matado

ainda que vivo ando...

Por ser vosso namorado,

sempre cá ando chorando

sem me ter aproveitado.

710

Eu vos mando encomendar

que não caseis lá com ninguém,

e assi vo-lo mando rogar,

porque, vós sois o meu bem,

que Deos me queira guardar.

715

De vosso esposo, Gonçalo.

Ora lea-ma, senhor.

Lê o Escrivão a carta acima escrita e diz o Ratinho:

74

Ratinho

Ora, está muito boa,

a todo meu contentar!

No sobrescrito há de levar:

720

À muito nobre pessoa,

Catalina de Olivar.

Escrivão 2º

Esta carta seja dada

a Catalina de Olivar...

Ei-la aí, vai bem notada.

725

Ratinho

Ora, Deos vos queira guardar.

Escrivão 2º

Ele seja em vossa guarda.

Vai-se o Ratinho e entra um Parvo cantando:

75

Parvo

Ai damalo, ai damalo...

(cantando)

Quem me dera um condado...

Noutro dia fui ao mato

730

catar um feixe de lenha,

e passei pola azenha,

e pareceu meu sapato.

Escrivão 2º

Moço, és muito avisado,

segundo meu parecer...

735

Queres tu ser meu criado?

Parvo

Mas vós sereis o pelado!...

Que eu, não no hei de ser.

76

Escrivão 2º

Queres tu morar comigo?

Dar-te-ei bem de comer.

740

Parvo

Se vós me derdes, um figo,

serei eu vosso amigo,

e mais, vinho a beber...

E cama, para dormir,

e lume, para me aquentar,

745

botas para eu calçar

e pano para vestir.

[]

77

Escrivão 2º

Tudo isto te darei

se comigo quês viver.

Parvo

Não me heis de ensinar a ler,

750

porque logo chorarei...

E se não, não quero ser!

Escrivão 2º

Sam disto muito contente!

Não te quero ensinar

se comigo quês morar!

755

Parvo

Eu também sam mui contente!

Dai-me logo de almoçar.

78

Escrivão 2º

Ora, toma na cabeça

essa mesa, e este banco.

Parvo

Ai! Eramá, como pesa!

760

Oh, dou ò demo a mesa,

que me tem já um pé manco.

Eu botei-a ali no chão,

pois não na quereis tomar?

Escrivão 2º

Dou ò demo o parvoeirão!

765

Tomai-a logo, sem tardar,

e tende-a mui bem na mão.

79

Parvo

Se ela pesa, como lazeira!

Vós não na quereis tomar?

[]

Escrivão 2º

Eu levarei a cadeira...

770

Parvo

Pois eu hei de ir a cantar.

Cantiga:

Olhai mãe, não vos morrais,

esperai assi, eramá,

um pouco, até que eu vá.

Fim.